Hoje vou dar colo à minha vida
Esquecer, para sempre
Esta ou aquela tristeza
Tão bem mal esquecidas
E até as outras
Das noites perdidas
Dos dias em que só me perdia
E, de súbito, me omitia
Sem sombra de beleza

Hoje serei total subtileza...

Vou deixar a louça por lavar
E a roupa por estender
Enlouquecer o sofá
Por não ter
Quem se lhe sente

Não mais dormente...

Hoje, acendo-me
Resplandecente
E fogueio um passado
Sem mais presente
Passo-o pelas brasas
Dou-lhe tez de carvão

E esqueço o banho do cão
Dou abandono ao fogão
Salto-me, como uma pulga
Em minha própria direção

Altivamente...

Hoje sinto eu e sinto muito
Por mim e por muita
Daquela gente
Que já não sente
E se senta
Apenas se senta...

Ausente
Num passado presente...

Vou na poltrona da vida
De coração lavado
D'alma estendida
De espírito requintado
Por um amor cozinhado

Lentamente...

E eis que me bate à porta
Gente
Pouco resplandecente
Daquela que não sente
E anda sentada de pé

Triste, não é?

Mas, surpreendentemente...

Convido-os para entrar
Não se querem sentar?
Lavar as mãos?
Estender os casacos?
Não tenho brasas na lareira
Desliguei o fogão
Mas há café na cafeteira

Sou insolente...

Dão as horas na igreja
E o cão ladra de perdição
Sem que eu o veja
Ou me reveja

E o jantar
Encomendado
Como as almas
Chega à mesa
Toda a gente se senta
E assim se ausenta
Em sublime redundância

Latente...

Mas eu continuo resplandecente
Sozinho
E orgulhosamente
A dar colo ao que me falta
E fogo ao que faltou
Àquela gente
De pé para a vida
Arreado do passado
Jamais sentado

Hirtamente...

E no meio de mim
Sem tristeza
Numa súbita beleza
Vejo-me perdido dessa gente
E acho-me novamente

Duradouramente...

Boa noite
Até à próxima!
Voltem novamente (ou talvez não...)

E um inteiro de mim
Volta ao presente...

Sento o cão ao colo
Já não ladra perdidamente
Está dormente
E afago-lhe o pelo
Que fica em pé

Imponentemente...

Olho para a mesa
Cadeiras vazias
Pratos lavados
Toalhas estendidas
Copos por banhar

Parece que nem esteve lá gente...

Terei sonhado?
Ou foi parte de mim
Que me visitou
Saiu pela porta
E esqueceu o passado?

Que importa?
Só devo estar cansado
Vou dormir
Hoje ficou-me tudo arrumado
Mas amanhã ainda tenho a lida da casa