"Pessoas e Gentalha"

Não poucas vezes, quem não o faz, interrogo-me sobre o que tenho de melhor e pior na vida. Muitas vezes, quando o faço, não chego a certezas, nem absolutas nem relativas, mas sinto que o decorrer dos anos me aproxima da resposta.

Todos temos valores e princípios, uns inatos, outros incutidos por quem nos criou e cria, os assimilados, inconsciente e conscientemente, junto dos círculos sociais que frequentamos, esferas de que por vezes nem queremos fazer parte e até nelas vamos recalcando repulsa, e outros ainda que, de forma crítica, vamos formando ao observar na cercania os comportamentos alheios e confrontando-os com os nossos. Este último acto, encarado como processo de constante desconstrução e reedificação, apenas é exercível por quem tenha o desprendimento de si mesmo que o permita.

Esses valores e princípios serão sempre subjectivos, não há qualquer matriz ou cartilha que defina quais são os correctos. Mesmo o que é correcto é e poderá sempre ser tido como subjectivo pois resulta de uma agregação, por vezes não democrática, de praxis e costumes. Mas há sempre quem, diria mesmo muitos de nós, será talvez defeito da condição humana, exponenciado pela dimensão do ego e grau de humildade de cada um, se ache como o bastião dos correctos, dos verdadeiros, valores e princípios, e converta o subjectivo em objectivo, pelo menos aos seus olhos assim o é e sempre será. Sendo uma inevitabilidade, não o será, pelo menos para os menos incautos, uma imprevisibilidade.

O percurso e as experiências da vivência, as de tristeza, as traumáticas, o sofrimento, mas também as realizações do ser, as alegrias que sentimos e a resignação serena em aceitar o resultado das coisas que não controlamos, desde que por elas batalhemos, vão transmutando essa linha de valores e princípios pessoais, ora por auto-análise, ora por alteração da matriz social que, muitas vezes incorrectamente, nos impõe o que deve ser o correcto, ora por ambos. Mas não em todos nós, pois há quem cristalize e se torne prisioneiro incrustado em algumas dessas experiências de vida de matriz única.

A obsessão pela materialidade, o acérrimo sentido de posse, o egoísmo e o prazer em mal fazer, e não falo do que provém do ócio ou do descuido que induza menor rigor no que fazemos, mas daquele que se materializa em acerrimamente infernizar a vida dos nossos pares como se, sem a mínima dose de altruísmo, ela fosse nossa propriedade, são para mim o arquétipo da falta de valores e princípios. Esta avaliação subjectiva é para mim bastante objectiva, até porque já trouxe em mim de forma agudizada algumas dessas faltas e, embora procure, e sempre procurarei, enquanto não me falte o desprendimento e a lucidez para isso, minimizá-las, sei que será acto também sempre condenado à subjectividade alheia. Porém, a última das faltas que elenquei, acho que nunca carreguei, pois se mal fiz a outrem, nunca senti prazer nisso, e, julgo, a maioria das vezes que o tê-lo-ei feito, e fi-lo, porque acho-me como tendo o desprendimento para o sentir nos actos reactivos dos outros aos meus, ainda que o receba sob a forma de inacção vincada, o fiz sem o realizar.

 Mas então o que tem isto a ver com o que terei, poderemos ter, como de melhor na vida? Não sei, como já referi, dar uma resposta lapidar, mas nem por isso vou deixando de acumular no meu depósito de certezas, e digam-me que estas são subjectivas, que objectivamente apelidarei os ditadores de tais incertezas de gentalha, que o segredo da pergunta serão talvez as pessoas, especialmente as que têm a humildade, a vontade e a capacidade de se auto-analisarem, melhorarem-se e fazerem bem aos outros, ainda que, inevitavelmente, carreguem defeitos, mas os aceitem quando apontados. Objectivamente, conheço e tenho o prazer de privar com gente assim. Não são muitas, são as suficientes, e tenho ultimamente polarizado algumas delas em meu torno, talvez porque, subjectivamente é certo, me avalio como sendo hoje também uma delas. E o pior da vida? Esta pergunta tem uma resposta objectiva: a demais gentalha.