"Guia De Emoções"

Retomei hoje os encontros com o meu orientador de sentimentos. A sala onde há longos anos acerto coordenadas do meu pensamento, me desconstruo e reconstruo continuamente, assumiu cores diversas em cada conversa consoante a densidade das nuvens que fui acumulando nos interregnos dos nossos longamente breves diálogos e que lá para dentro transportei e, por vezes, ainda lá deposito. Alturas houve, longas alturas, em que nem sequer me sentia entrar naquela sala, apenas nuvens negras, relampejantes, com vontade de trovejar e despejar água imunda habitavam aquela divisão, forçadas, sem saber com que forças, pelos meus olhos quase sempre turvos de nitidez e perdidos de contexto, a quebrar a fronteira da linha de porta que atemorizava, e às vezes ainda faz hesitar, confesso, pois para lá da raia promete-se afastar o mau tempo e trazer a bonança. Aquela porta marca, sempre marcará, o ponto de entrada para dentro do mais profundo eu, dos meus piores receios e tristezas. Daí talvez o temor, bem sei que o é. Escavar por dentro de nós, contrariando o que muitas vezes o não quer ser, pois uma certa dose de sofrimento, ou de martirização até, mesmo que muitos digam que é um pensamento de digna estupidez, é um prazer inato e perverso do ser humano. Mas podemos aprender a domar a génese que nos foi moldada e a transformar a perversão em caminhos com sentido em jeito de sinal de alarme quando pomos pé fora do trilho. Não conheci até hoje, e penso que nunca conhecerei, caminho mais longo, simplesmente porque ele não tem fim, só com o nosso mesmo fim ele findará. Será assim? Nunca me consigo deixar de questionar se o fim será mesmo o fim, enfim, vou julgando muitas vezes que sim, mas secretamente não quereria que fosse assim. Hei-de perceber um dia, nem que seja por sentir que deixei de sentir, de existir, e que o que me agora questiono deixará de por mim ser perguntado, apenas porque já não o poderei sequer pensar. Mas espero que não seja assim que o realize, vou mantendo a esperança e acho que ela se vai avolumando. A mesma esperança que se formou nas várias conversas com o meu peixe guia e que, lentamente, tantas vezes contra fortes marés adversas, ganhou, entre tantas lágrimas e dor deixadas naquela sala, um sorriso à saída da porta dos temores, não apenas por sair, em jeito de fuga, mas por sentir que a mim haveria um dia de voltar, sem saber bem quando, nem quanto de mim regressaria, mas que haveria de voltar. Hoje voltei àquela sala, já o disse, e voltei a mim, não sei quando, já o terei feito muito antes, tenho a certeza, também não sei quanto de mim regressou, nem me interessa. Mas sei que regressei, e gostei do que se me regressou como pessoa, pois levei comigo um legado de escritos de linhas de vida tortas, direitas, esquivas e de tantas outras direcções que, brevemente folheadas, desprenderam um sorriso de uma emoção breve e ténue, mas tão profunda, pois nunca a tinha observado em mais de dez anos, que tudo arrepiei, mas, especialmente, o caminho de saber que estou em boa direcção. Hei-de lá voltar, tranquilamente, afagando a porta, continuando a pintar a sala de várias cores, mas claras, belas, reluzentes, predominantemente assim será.