"Breve Tratado Da Maledicência"
De tudo mal falar, nos traseiros, frontes ou perfis de pessoas e coisas, é arte de gente, com tanta falta dela, que até de si mesmo, por vezes sem o saber, se chegam a mal dizer. Na ânsia descontrolada de corroer mordem suas línguas desdentadas, largando fel que vai escorrendo para o interior e enferrujam suas almas já, apenas, ligeiramente brancas, que simplesmente sequer deixam de ser frugalmente alvas. Vão mergulhando assim em vivência de lago de palavras de negritude permanente, censurando tudo o que os rodeia, mesmo o que os reconhece e premeia, tornando-se mestres de tanta falta de arte que, a outros, e a si mesmos, se ensinam até a mal falar do falar mal. O pouco mal falar, sabendo-o dosear, mas sem hesitar, é porém arte necessária que pinta atitude revolucionária de gente que não se basta em ser ordinária. Pois o mal falar de nada é acto de desistência extraordinária dos resignados ao saber alheio instalado, que por omissão de apetência os adormece no sono da ociosidade mal falada, acordando cedo na boca dos que tanto já mal falam. Os de carácter falam mal pelas frentes, ainda que o também possam fazer de costas viradas para os que de frente sabem lhes vão mirando o ditar do mal que falam. Estes sabem que seu mal falar, por voz de peito que não teme balas, agita suas diásporas e diagnostica o que será, e haverá, de mudar. As marcas de quem não teme os projécteis recebidos dos assim mal falados por sua boca, onera-os do reparo das patologias que identificam e trá-los em permanente, mas saudável, desassossego. Os que têm apenas um caracter como carácter, o que lhes marca a testa como farol que sinaliza a falta daquele, urdem sempre em surdina dos visados teias em que acabam por ser repasto de quem as percorrerá como tendo oito pernas, pois seu mal falar, um dia, pernas deixará de ter para andar. Há ainda os que falam mal pelos lados, julgando-se esquivos mas tão visíveis pelos visados, pois têm perfil dos que de esguelha fogem dos olhares e não tem sequer a lembrança que nas costas do mal dizer se poderiam pelo menos cobardemente esconder. Falar mal do mal e mal do bem, há muito quem, mal falar e tudo fazer para mudar o mal falado, se assim for acertado, e bem falar do que haja de ser falado, também se não for errado, há porém poucos quem, e esses, geralmente, são gente que fala bem, pois é nessa arte de palavra que os outros, igualmente, se sentem bem.