"Deixaram Suas Almas Na Foz"
Estava frio. O vento projectava-o do mar em pleno desafio aos que tinham aquecido o néctar de seu interior à luz de velas, abraçados em palavras que se haviam entrelaçado de forma perfeita, apenas perfeita, mas nada menos do que perfeita. Porque as bocas que as ditaram eram, tão só, a mesma, sempre foram, sempre serão, apenas desconheciam que por aí vagueavam isoladas e descrentes, mas que seu rumo estava traçado, sempre esteve, como carta repleta de todos os selos e moradas que persistentemente, mas carinhosamente, haveria de encontrar a testa de duas portas gémeas e beijá-las ternamente por segurança de destino certo. Achada a morada, essencialmente, tão especialmente, as palavras haverão de seguir percurso eterno, como letras que seguirão sempre de mão dada em rumo de felicidade, construindo novas palavras, novas frases, e tudo o que se pode dizer, aposto em escrita ou sob todas outras formas. Porque as palavras são, sempre foram, as mesmas, e sempre andaram abraçadas, mas não o sabiam, ainda que, mesmo tão infimamente, o pressentissem. Passearam-se um ao outro e em toda a volta nada se escutava, até as luzes dos lampiões que altivamente os miravam se iam rendendo à sua passagem, oferecendo a sua chama ao turbilhão que ia assolando a calçada em cada passo suave, gentil, mas que em cada pegada se incrustava nas pedras pois estas iam amolecendo, sem resistência possível, perante a pesada leveza das palavras. E até o ar em volta, frio, se ia transformando, como por alquimia, em intenso calor, interior e exterior, pois era sugado por cada sorvedela que alimentava as palavras mútuas, mas que são, sempre serão, as mesmas. A profetisa e o aprendiz de poeta sentaram-se em degraus humedecidos pela espuma do mar e sentiram-se flutuar na pedra que lhes dava suporte e até a humidade, solidária com a transmutação do frio, ascendeu progressivamente sob a forma de calor, pois foi absorvida pelas palavras que só os dois sabiam, sempre souberam, e sempre saberão, trocar de tal forma. As ondas na cercania, sem saber que nunca o conseguiriam, e nunca o conseguirão, sentiram o supremo desejo de imitar tal conversa em que se sussurravam palavras que ninguém, a não ser os dois, ouviram em segredo que nunca nada, nem ninguém, irá saber até onde foram e qual a sua intensidade. Todos os seres do mar espreitaram também ansiosos por ouvir tais palavras, mas foram frustrados, o sussurro era tão intenso que excedia a capacidade de todos, de tudo, de saber o que nele fluía, que apenas a audição das bocas com a mesma palavra o podia escutar. Ao longe, dois faróis alternavam em brilho de aviso a todos os que se aproximassem que não havia perigo, como reais projecções do coração da profetisa e do aprendiz de poeta que, em compassada intermitência, se iam complementando de modo tão perfeito, apenas perfeito, mas nada menos do que perfeito, que todos os barcos guiados pela vida que se entalha uma na outra, mas especialmente a do poeta aprendiz e da profetisa, navegarão sempre em bonança, lado a lado, ainda que separados por mares de distância. Por plena madrugada adentro, entregaram-se totalmente, descobrindo cada poro e cheiro que os formava, riram, cantaram, brincaram. As ondas assolavam o perímetro, mas recuavam pelo receio do poder de tais sentimentos extraídos pela primeira vez, a tal ponto que, contrariando a sua natureza, cada onda se tornou impotente a não ser na sua capacidade de despejar réplicas de sentimentos que se intensificavam num crescendo imparável. Separaram-se quando a madrugada já se rendia, levando consigo o dia e com ele se deitando, mas nunca exaustos ou tristes, porque permaneciam juntos, sempre permaneceram, e permanecerão, e até as ondas que os levam fisicamente para locais distantes, mas sempre tão próximos, perceberam, sempre perceberão, quão impossível será separá-los, porque ambos são, simultaneamente, maré cheia e vazia de todos os oceanos que se complementam, sempre se complementarão, em alternância, e nem a distância saberá inverter tal mistério que ficou gravado, e sempre ficará, nas rochas que, silenciosas perante as marés, as ondas, os seres do mar que vieram em surpresa espreitar, os faróis, os lampiões que se ajoelharam, se converteram em diamantes de sentimentos que à distância serão ponto de luz que a profetisa e o aprendiz de poeta sempre vislumbrarão e que será eternamente alimentado pelo sussurro que nunca ninguém ouviu e jamais ouvirá.