“Subtraí o Medo da Dor e a Dor do Medo”

Guardo em mim diversas operações. Não daquelas que nos invadem a pele dilacerando a carne pela mão de curadores que buscam resolução das maleitas que o meu corpo vai exteriorizando sinalizando a física dos anos a que sou cumulativamente sujeito. Não, essas têm estado ausentes dos estados que me formam a geografia do esqueleto pois a química do meu espírito tem-nas afastado como fórmula resolvente que impermeabiliza o que me cobre a estrutura que me sustenta. 



Mas a chuva tem-me fustigado e testado a resistência da capa que me envolve e, ultimamente, esta tem sido penetrada por algumas nuvens que despejam em mim pluviosidade ácida que me quer corroer a cobertura. Quando assim chove, apelo aos curandeiros para me cozerem as fronteiras que se vão rasgando como placas tectónicas que o tempo vai separando e deixam por seus abalos marcas visíveis que não procuro esconder, não quero esconder, mas tenho de as resolver, pois se a dor que me provocam é negligenciável – não que o meu corpo se haja transformado em pedra que nada sente quando leva um pontapé e rebola calçada abaixo livre pelo impulso – já não o é a dor que vejo os outros sentir por minha ausência dela.
Perdi totalmente o medo da dor, não que não a sinta, pois quando me pontapeiam, realmente me chutam como bola castigada pelo exterior, também rolo como esférico não empedernido, e que nunca estará, oh não! Bem antes ao invés, está cada vez mais suave. Mas as dores, as desse tipo, são só dores, serão sempre apenas dores, pois tantas de outro tipo se me deram, e e ainda me vão dando, mas já tão fugazmente, que aquelas se me apresentam somente como tal, apenas dores. Quando destas as sinto, e também as sinto profundamente, e quem não as sente seria pedra e não gente, nem preciso de apelar à resistência da mente para que se alinhe em formação de escudo contra a invasora, pois ela sabe, apesar de ser só mente, a verdade das palavras que escrevo ao dizer que o meu corpo se dor tem porém as julga que, pelo menos, as não sente.
Mas às vezes a minha mente também me mente, pois o meu corpo sente dor, ainda que eu não a lamente, pois não sou pedra, nem mesmo pomes, sou deveras gente e não choro por elas, porquê por elas chorar se por tantas outras coisas já o fiz e ainda o faço felizmente? Não choro mesmo se por vezes minha mente chore pelas dores que realmente meu corpo sente. Mas estas são apenas lágrimas que se desprendem pelo render da mente à dor que o corpo lhe oferece. Sei que as lágrimas apenas se soltam no extremo limiar da dor física que rasga o meu manto profundamente, não sendo ainda assim fácil que estas me batam à janela dos olhos por esse motivo, chorando antes eu por outras razões, sempre que necessário e abundantemente.

Já tive uma das bases de meu suporte físico desfeita e a jorrar sangue plenamente e, perante espanto de toda a gente, que até em suas caras dores lhes vi pela dor que de mim tomaram, dela fiquei ausente. Não é coisa ou feito de que me orgulhe, mas também não é de que me lamente, pois foi apenas reacção de pedra arremessada em corpo de gente, que outrora, antigamente, apenas em si tinha a dor do medo de, por dentro, ser pontapeada sempre presente.  Mas as pedras não sentem dores, como poderei eu então ter encarnado dores de pedra se esta as não sente? Se uma pedra é pontapeada e rola forçadamente, alguém há que o lamente? Nem a pedra o diz ou expressa, mesmo se o sente, como o poderia se não fala ou chora como gente? Acontece que por dentro das pedras às vezes há gente, tal como em casas desabitadas empedernidas que no seu interior albergaram algo que sentiu e ainda se sente, pois seu espírito ido deixou dor em quem ainda os lamenta no presente. E mesmo em casas habitadas por gente que outros já partidos chora de forma candente, a dor também se sente. E a pior das que pode dar a essa e outra tanta gente é a do medo nunca ausente, como pedra que sobre elas sempre e pesadamente carrega.


É dessa dor que guardo em mim diversas operações. A primeira, a da soma de todos os medos como nefasta álgebra que resulta até no medo de ter medo. A segunda da multiplicação infinita do medo somado que me trouxe em pleno desespero pelo permanente desassossego de vida vivida em jeito de enterro. A terceira a da reaprendizagem dos números que me permitiu a divisão dos medos em compartimentos estanques que foram deixando brecha para a entrada, ténue, mas progressiva, de luz que se foi adensando e o medo foi cegando. A seguinte, a da subtracção total da visão da vida vivida em medo, sempre medo, ainda que seguindo em desassossego, sim desassossego, pois dele não me desapego, pois busquei e tenho paz, mas não quero pleno sossego. A última operação até da matemática guarda segredo. A de saber juntar todas as aritméticas dos sentimentos e das palavras e ser feliz pela pena de minha mão que, hoje, e jamais o fará, não teme qualquer operação, mesmo aquelas que até ao medo meteriam medo.